Se
hoje não é mais possível sustentar seriamente que os animais são máquinas e,
como tal, incapazes de experimentar dor ou sofrimento, não é menos verdade que
o respetivo estatuto jurídico nem sempre acompanhou as evidências científicas.

A
senciência dos animais é inquestionável, abrangendo as espécies compreendidas
na Declaração de Cambridge de 2012 – mamíferos, aves e moluscos cefalópodes; tratando-se
de um conceito aberto e dependente dos avanços do conhecimento científico.
A
capacidade de sofrimento dos animais tem sido apontada como fundamento da consideração
ética que lhes é devida, bem como do interesse no não-sofrimento e respetiva
tutela.
Recorde-se
a célebre observação do utilitarista oitocentista, Jeremy Bentham, sublinhando que
a questão relevante não é se os animais podem raciocinar ou falar, mas sim se
podem sofrer.
“The question
is not, Can they reason? nor, Can they talk?
but,
Can they suffer?”
Em
Portugal, os animais continuam a ser designados e tratados como “coisas” pelo
Código Civil, que data de 1966 e praticamente se mantém inalterado a esse
respeito.
A
falta de um estatuto jurídico próprio para os animais não constituiu obstáculo
a alguma intervenção penal, materializada na neocriminalização de condutas de
abandono e de violência injustificada contra certos animais, mediante a aprovação
da recente Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto.
De
referir que a criminalização de condutas de violência injustificada contra os
animais vem merecendo consenso alargado nas sociedades civis e é hoje a realidade
jurídico-positiva de vários países que integram a União Europeia, como Alemanha,
Áustria, Reino Unido, França e Espanha.
Aspetos positivos da Lei n.º 69/2014
Esta
lei constitui um marco histórico do direito animal, em Portugal, no âmbito da
proteção dos animais, tendo sido aditados ao Código Penal dois novos tipos de
ilícito que punem os maus tratos e o abandono (inseridos num título designado “Dos
crimes contra animais de companhia”).
Não
se pode continuar a ignorar que a violência contra animais está intrinsecamente
relacionada com a violência inter-relacional e que o abandono constitui um
verdadeiro flagelo, com sérias repercussões para a integridade e saúde dos animais
e para a saúde pública. Ademais, aos novos tipos de ilícito contra animais foi atribuída
a natureza de crimes públicos, agilizando e reforçando a ação penal.
Aspetos problemáticos ou insuficientes
A restrição da tutela
penal aos “animais de companhia”: alguns animais são mais animais do que
outros…
A
principal objeção à Lei n.º 69/2014 reside no seu limitado âmbito de aplicação,
uma vez que abrange apenas os chamados “animais de companhia”. Assim, para
efeitos de determinação dos animais protegidos, o legislador optou por um
critério utilitarista, sendo exigível que se trate de animal detido ou
destinado a ser detido por seres humanos para entretenimento e companhia
destes.
Sem
prejuízo de se reconhecer a importância crucial dos “animais de companhia” para
a melhoria da qualidade de vida das pessoas, entende-se que o crime de maus tratos
devia abranger todos os animais sencientes ou, pelo menos, os animais vertebrados.
Não
é curial que, perante as mesmas condutas de desvalor e de violência injustificada,
se discriminem os animais agredidos em função da sua utilidade social,
privilegiando os que façam companhia e entretenham.
De
referir o parecer proferido pelo Conselho Superior da Magistratura na parte em
que considera que “à semelhança do que acontece na Lei de Proteção dos Animais
alemã, deveria caber a violência ou os maus tratos injustificados sobre
qualquer animal vertebrado e não apenas sobre os animais de companhia”. Assim,
“não se compreende a razão para se considerar legítima a exclusão do âmbito da
proteção da norma, os casos de violência ou maus tratos injustificados
infligidos a um burro, a uma vaca, a um cavalo ou a um veado”.
A exclusão dos maus
tratos psicológicos
São
previstas e punidas as condutas dolosas consistentes em infligir dor, sofrimento
ou quaisquer outros maus tratos físicos. Desta forma, o legislador excluiu da
previsão penal as condutas causadoras de dor ou sofrimento psicológico,
nomeadamente, stresse intenso.
Acresce
que grande parte dos maus tratos sofridos pelos “animais de companhia” e das
queixas informais devem-se às deficientes condições em que são alojados e
mantidos, não dispondo das condições e do espaço adequados às suas necessidades
fisiológicas e etológicas.
Não
se vislumbra que seja menos grave manter um animal, como um cão ou um gato,
enfiados em jaulas de dimensões exíguas ou presos, a céu aberto, por meio de
corrente de escasso comprimento, durante semanas, meses, anos, a fio, do que
açoitar o mesmo animal.
Ausência de penas
acessórias específicas
Tendo
em conta que o Código Penal não prevê qualquer pena acessória, seria conveniente
a inclusão de pena de interdição de detenção de animais e de exercício de
qualquer profissão ou atividade relacionada com animais.
É
que ainda que o arguido seja acusado, e venha a ser condenado, pela prática de
um crime de maus tratos a “animal de companhia”, não há sanção acessória que
possibilite a perda do animal a favor do Estado ou a favor de alguma associação
de proteção animal.
O
que, por sua vez, origina novas questões e problemas relativamente ao bem-estar
físico e psicológico desses animais. Não basta criminalizar e remover o animal do
agressor, é também necessário criar condições para a assegurar o seu bem-estar
futuro. 
Fonte: Moreira, Alexandra Reis (2015), Perspetivas quanto à aplicação da nova legislação, Atas da Conferência “Animais: Direitos e Deveres”, Instituto de Ciências Jurídico-Políticas.
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